sexta-feira, 28 de abril de 2017


A REPRESENTAÇÃO DE FRANCISCO SOLANO LOPEZ NO RELATO EPISTOLAR DOS CAMPOS DE BATALHA DO PARAGUAI, POR SIR RICHARD BURTON ENTRE 1868 E 1869

http://www.eeh2014.anpuh-rs.org.br/resources/anais/30/1406476132_ARQUIVO_ANPUHRS.pdf

A ATIVIDADE HISTORIADORA EM SEU CAMPO DISCIPLINAR: LIMITES, POSSIBILIDADES E REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Leonildo José Figueira**
Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG

“O campo é um jogo no qual as regras do jogo estão elas próprias postas em jogo”
(BOURDIEU, 2003, p.29)

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo refletir o campo de conhecimento e abordagem da História, verificando a relação com seu objeto, seus limites, suas possibilidades, bem como a maneira como são construídos seu discurso, sua teoria e seu método. Nesse mesmo âmbito será pertinente pensar os interditos da História enquanto campo disciplinar, como sendo aquilo que se coloca como base ou como proibido a seus praticantes. Não se trata de uma pretensão em responder todas as questões caras à esta temática, mas sim contribuir para uma importante discussão em torno da disciplina e do ofício do historiador.

PALAVRAS CHAVE: Teoria da História; Historiografia; Campo disciplinar

ABSTRACT: The present work aims to reflect the field of knowledge and history approach, verifying the relationship with its object, its limits, its possibilities and how they are constructed his speech, his theory and his method. In this same context will be relevant interdicts think of history as a disciplinary field, as that which arises as a base or as the forbidden its practitioners. This is not a claim to answer all the questions guys this theme, but contribute to an important discussion about the discipline and profession of historian.

KEYWORDS: Theory of History; historiography; disciplinary field

A partir do fato histórico, são produzidos e elaborados diferentes discursos, diversas concepções, que resultam em obras caracterizadas como “texto histórico”; o qual está sujeito a reflexões, críticas que surgem, vindo de outras vertentes de pensamento. Nesse contexto concordamos com Haydem White ao afirmar que a realidade passada é o objeto de estudo da história ao passo que a historiografia é o discurso produzido pelo historiador. (WHITE, 1991, p. 21) O historiador busca compreender as ações práticas dos homens, os móveis que os animam, os fins que os norteiam, o seu universo simbólico e suas significações que para esses homens tinham seus comportamentos e ações.
De maneira prática a história se volta aos eventos humanos no tempo e só se torna visível e compreensível com a sucessão temporal, que por sua vez faz ser necessário à reescrita contínua da história. (REIS, 1999. p. 08) O tempo é um fator fundamental para a historiografia, pois com a sucessão do mesmo, novas questões são propostas e o historiador, como responsável pela produção do conhecimento histórico, tem uma vasta e mais profunda percepção do passado.
A história fomenta questões, que são resultantes de um tempo vivido, um presente que é particular a cada historiador, uma vez que toda a produção historiográfica está enraizada em uma particularidade, um lugar social. A história se torna, então, uma reconstrução narrativa, documental e conceitual do passado, porém construída em um presente. (CERTEAU, 2006, p. 72)
Não há um passado fixo a ser esgotado pela história uma vez que não existe verdade absoluta. A história é constantemente escrita e reescrita tornando-se assim resultado de inúmeras posições do presente, e a interpretação histórica vai depender de quem a formulou, em outras palavras, vai se ter uma visão diferente ao analisar o mesmo assunto escrito por “um nativo ou um estrangeiro, um amigo ou inimigo, um erudito ou um cortesão, um burguês ou um camponês, um rebelde ou um súdito dócil”. (MALERBA, 2006 p. 14)
O historiador Roger Chartier usa das palavras de Michel de Certeau para falar a respeito da prática historiográfica, enfatizando que:

ela [a História] é uma prática científica, produtora de conhecimentos, mas uma prática cujas mentalidades dependem das variações de seus procedimentos técnicos, dos constrangimentos que lhe impõe o lugar social e a instituição de saber onde ela é exercida, ou ainda das regras que necessariamente comandam sua escrita. (CHARTIER 1994. p. 112.)

A história enquanto conhecimento, é constituída por uma série de discursos à respeito o mundo, se apropriando do mesmo e atribuindo-lhe significados. (WHITE, 1999, p. 14) A história é, porém, diferente de passado, existem livres um do outro embora sejam aliados. (JENKINS, Keith. p. 24) Podemos dizer que o passado e a história estão distantes um do outro no tempo e no espaço, e essa argumentação se dá pelo fato de um mesmo objeto de investigação ser visto e interpretado por práticas discursivas diferentes, ao passo que cada uma dessas práticas possui uma linguagem diferente e valores totalmente diferentes.
Ao observarmos um quadro de uma determinada época, ou até mesmo uma paisagem atual, ambos serão observadas e lidas de maneira diferente por geólogos, historiadores, artistas, economistas, etc. Assim percebe-se que a história, embora seja um discurso sobre o passado, está numa categoria diferente dele. (JENKINS, Keith. p. 25) O termo “passado”, deve ser usado para se referir à tudo o que passou em todos os lugares; a história trabalha com fragmentos do passado, apenas com os fatos importantes que não merecem cair no esquecimento.
Deste modo podemos conceber que a historiografia é o mais completo testemunho que podemos ter sobre diversas culturas que foram desaparecendo ao longo do tempo. O conhecimento científico obtido pela pesquisa exprime-se na historiografia, para a qual as formas de interpretação desempenham um papel tão relevante quanto o dos métodos da pesquisa. A história se apropria de um discurso científico para tratar do seu objeto, porém não possui um método distinto de pesquisa, segundo Hayden White (1999).
O conhecimento histórico é produzido por um grupo de profissionais, chamados historiadores, estes quando iniciam seu trabalho carregam certas coisas identificáveis e que lhes são particulares. Levam a si mesmos, seus valores, suas posições, suas perspectivas ideológicas, seus pressupostos epistemológicos, entre outros fatores os quais os quais acompanham-no durante toda a pesquisa. O historiador pode estar inserido em diversas categorias, como econômicas, sociais, políticas, culturais, ideológicas, etc.
Não existem métodos definitivos nem teorias definitivas que apresentem a verdade absoluta da história, uma vez que o presente enquanto ponto de observação ou investigação do passado, muda com a sucessão do tempo. Assim, o que se tem são apenas visões parciais do passado, pensamentos que estão assentados sobre um ponto de vista que é particular. Segundo Michel de Certeau, todo o historiador é marcado por um lugar social, onde sua filiação teórica, filosófica e metodológica é que vai estabelecer as questões a serem postas. (REIS, 1999, p.10) “A verdade histórica talvez possa ser comparada a um caleidoscópio: os historiadores diversos e sucessivos escolhem e sintetizam, serve–se de metáforas, formulam perguntas especificas servem-se de fontes e técnicas diferentes”. (REIS, 1999, p.11)
Sendo uma narrativa de acontecimentos, a História apresenta diversas variações em seus relatos; (VEYNE, 1982, p. 20) podemos ter um mesmo evento, por exemplo, visto por vários ângulos e analisada por diferentes métodos. O historiador não descreve exaustivamente uma civilização ou um determinado período, ele não trata de todos os fatos de maneira minuciosa de modo a realizar um inventário completo; ele apresentará somente o que é necessário para se conhecer a determinada civilização, escrevendo assim somente os fatos que marcaram seja a civilização ou o período.
Todo o historiador pretende oferecer um ponto de vista novo e mais abrangente ao escrever a história. Muitas escolas históricas carregam consigo a ideia de que seu ponto de vista é único, definitivo, construídas em bases objetivas e científicas, desvalorizando assim as interpretações feitas anteriormente, e consequentemente designando-as como equivocadas ultrapassadas ideológicas e etc., ignorando a condição temporal em que se deu a elaboração da História. (REIS, 2001, p.11)
Ao colocar a pesquisa por escrito entram em cena os fatores epistemológicos, metodológicos e ideológicos, inter-relacionando-se com as práticas cotidianas, tal qual aconteceu durante todas as fases da pesquisa. É preciso considerar que o historiador possui uma vida familiar, ele está sujeito às pressões do local de trabalho, no qual se fazem sentir influências de diversas pessoas; existem também as pressões das editoras sobre diversos fatores como, por exemplo: a extensão o formato, o mercado os prazos, o estilo literário (polêmico, discursivo, exuberante, etc.), leituras críticas, a reescrita, entre outras. Porem ao produzir um conhecimento histórico partindo da pesquisa seguindo da escrita até chegar à biblioteca, o historiador passou por diversas pressões, sendo sujeito a diversas influencias, o que com certeza entra em choque com o produto do seu trabalho. (JEINKIS, 2001 p. 18-19)
Mais que um exercício intelectual, a história é uma operação, que produz e trabalha com a historicidade. A construção de um conhecimento histórico exige o entendimento e o domínio de procedimentos técnicos, exige um olhar sensível conceitualmente, teoricamente formado e metodologicamente preparado. (CERTEAU, 2006, p. 72)
Quando nos referimos à relação entre as três instâncias de temporalidade, “Passado”, “Presente” e “Futuro”, nos referimos a um vasto objeto que instiga e provoca a constante reflexão tanto de historiadores como outros intelectuais interessados. Desde a antiguidade, pensadores como “Santo Agostinho e Aristóteles já dedicavam ao “tempo” reflexões importantes que até os anos mais recentes têm servido como patamares de diálogos para filósofos contemporâneos como Heidegger (1927) e Paul Ricoeur (1983-85)”. (BARROS, 2010, p. 66) O tempo é fundamental para o estudo da História, pois é a partir dele que as sociedades humanas são analisadas, comparadas e transformadas em objeto. Segundo José D’Assunção Barros, Reinhart Koselleck (1923-2006) é um dos poucos autores que forneceram um “instrumental teórico mais apropriado para compreender esta questão na Historiografia”. Koselleck desenvolveu a perspectiva de que cada presente não apenas reconstrói o passado a partir de problematizações, mas que o presente este resinifica tanto o passado como o futuro. Koselleck se refere ao passado como sendo o “campo de experiências” e, ao futuro como sendo “horizonte de expectativas” Mais ainda, para Koselleck,

cada presente concebe também de uma nova maneira a relação entre futuro e passado, ou seja, a assimetria entre estas duas instâncias da temporalidade. E não é por acaso que o título de sua mais conhecida coletânea de ensaios é Futuro passado – contribuição à semântica dos tempos históricos (Koselleck 1979). (BARROS, 2010, p. 66)

Segundo Koselleck, entre o “espaço de experiência” e o “horizonte de expectativas” é sempre estabelecida uma tensão, que é própria da elaboração do conhecimento histórico e mesmo das diversas leituras sobre o fenômeno da temporalidade que vão surgindo em cada época, as quais lhes são oferecidos no momento atualmente vivenciado. Tanto a experiência como a expectativa são apresentadas por Koselleck como duas categorias para uso da Teoria da História, que entrelaçam passado e futuro (KOSELLECK, 2006, p. 308). Dessa maneira o passado, o presente e o futuro podem se alterarem, contraírem ou se expandirem conforme cada época ou sociedade, podendo modificar ou resinificar a maneira como são sentidas e pensadas.
Segundo David Lowenthal (1998) nós conhecemos o passado porque ele nos cerca, ou seja, lembramo-nos das coisas, lemos e ouvimos histórias e crônicas e vivemos entre relíquias de épocas anteriores. Toda consciência atual se funda em atitudes e percepções do passado, pois reconhecemos uma pessoa, uma árvore, uma tarefa, etc., porque já vimos ou já experimentamos. (LOWENTHAL, 1998, p. 64). Para o autor, “somos a qualquer momento a soma de todos os nossos momentos” (LOWENTHAL, 1998, p.64), afirma, ainda, que o passado nunca está morto uma vez que ele existe ininterruptamente na memória de pensadores e de homens imaginativos.

De fato ele [o passado] existe na memória de todos nós. Consequentemente tomamos conhecimento não somente de nossas ações e pensamentos anteriores, como também daqueles de outrem, seja por testemunho direto ou de terceiros. Até sinais de experiência excessivamente remota podem se tornar conscientes. (LOWENTHAL, 1998, p. 65)

Para Kosellek (2006) o tempo não é algo natural e evidente, mas sim uma construção cultural que “em cada época, determina um modo específico de relacionamento entre o já conhecido e experimentado como passado e as possibilidades que se lançam ao futuro como horizonte de expectativa”. (KOSELLEK, 2006, p. 09) O autor nos deixa claro que a experiência pertence ao passado o qual se materializa ou se concretiza no presente, de diversas maneiras, seja pela memória, pelos vestígios, pelas fontes históricas ou até mesmo pelas permanências sentidas e percebidas no seio da vida cotidiana. Segundo esse autor

A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram ‘incorporados e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, que não precisam estar mais presentes no conhecimento. Além disso, na experiência de cada um, transmitida por gerações e instituições, sempre está contida e é preservada uma experiência alheia. Neste sentido, também a história é desde sempre concebida como conhecimento de experiências alheias” (KOSELLECK, 2006, p. 309-310).

As expectativas correspondem a todo um universo de sensações e antecipações que se referem, mais precisamente ao devir. Tudo o que se refere ao futuro, aqui é pensado, seja relacionado aos nossos medos, nossas esperanças, nossos desejos, nossas inquietações, etc. ao horizonte de expectativas. A experiência se realiza no presente, que por sua vez é uma herança do passado, mas que produz inúmeras sensações sobre o futuro, sendo uma expectativa que se realiza hoje. (BARROS, 2010, p. 68)
Podemos afirmar que a historiografia vem passando por grandes mudanças desde a década de 1970; nesse contexto os intelectuais passam a ganhar espaço como objeto de estudo, fugindo daquilo que Jean-François Sirinelli chamou de “ângulo morto”. A história intelectual como nova abordagem parece ser um dos resultados de mudanças que estão ocorrendo na historiografia, a partir de constantes debates que vêm ampliando gradativamente, no interior do mundo acadêmico. (ZANOTTO, 2008, p. 36)
De maneira prática, para além dos pressupostos teóricos, abordamos o viajante inglês Richard Francis Burton entre 1863 e 1865, período em que permaneceu como cônsul em Santos. Considerado um dos mais marcantes intelectuais do seu tempo, nasceu em 1821 em Hertfordshire e morreu em 1890 em Trieste; curiosamente viveu numa época de grande importância política para seu país, período de reinado da Rainha Vitória. Ele foi militar, diplomata, cientista, naturalista e autor de mais de 30 obras, entre relatos etnológicos e traduções; um explorador de vida movimentada e romanesca que empreendeu ousadas expedições no continente africano ao lado de John Hanning Speke. (RICE, 1991, p.19)
Como cônsul inglês em Santos, Burton permaneceu entre 1865 e 1869, deixando importantes narrativas sobre os lugares por onde passou. Relatos, estes, que vão além da observação pitoresca e, nos servem de fonte histórica a antropológica. Trata-se de um homem de ciência do século XIX e, para estuda-lo nos apropriaremos das discussões pertinentes dentro do campo da História, mais precisamente da História Intelectual.
Justificando a afirmativa de que Burton foi uma das personalidades mais marcantes do século XIX, ele falava 29 idiomas e vários dialetos, disfarçava-se com muita facilidade, o que lhe possibilitou viver entre os povos do Oriente e da África. Estudou sobre a cultura de povos asiáticos e africanos, fato que permite verificar um pioneirismo em relação a Antropologia e os estudos etnológicos, especialmente dado a suas produções e expedições ligadas à Royal Geographical Society e Antrhopological Society of London, por volta da década de 1860. Burton peregrinou à cidade de Meca em 1853, (sagrada e proibida aos não muçulmanos) disfarçado de afegão; também foi à Harar, capital da Somália, de onde nenhum outro homem branco havia saído com vida. (RICE, 1991, p. 231) Juntamente com John Hanning Speke, como já mencionamos, explorou a região dos Grandes Lagos africanos, promoveu a busca pela nascente do Rio Nilo, descobriu o lago Tanganica Antes da posição consular em Santos, em 1861 foi nomeado cônsul em Fernando Pó  (atual Bioko), no mesmo ano em que casou-se com Isabel, numa cerimônia católica.

No Brasil, Burton percorreu, Rio das Velhas, o Rio São Francisco, esteve em Minas Gerais, na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo, produzindo importantes relatos sobre a terra, a gente, a geografia, etc. Tais relatos sobre o Brasil foram publicados em Londres, no ano de 1969 na obra titulada Explorations of the Highlands of Brazil; uma ano depois seria publicada Letter from the battlefield of Paraguay, também em Londres.

Em Londres, Burton teve Karl Marx como colega de pesquisa em algumas salas de leituras nas grandes instituições de Londres (RICE, 1991, P. 19) o Historiador Eward Rice, na tentativa de traçar um breve panorama do contexto histórico na época de Burton, ressalta que
A Revolução Industrial estava em pleno florescimento, transformando o verdejante campo dos poetas ingleses em montes de miseráveis escórias humanas; as potências europeias tinha recortado o mundo em colônias, protetorados e esferas de influência; as invenções que diariamente modificavam o perfil do cotidiano surgiam em avalanche e, à medida que aumentava a alfabetização, ideias de toda espécie – revolucionárias, intelectuais, científicas e políticas – se alastravam por todo o mundo com a força de uma epidemia. (RICE, 1991, p. 19)

Segundo Alexander Gebara “durante as décadas de 1850 e 1860 o nome de Burton esteve associado as viagens de exploração e, principalmente, a geografia e a antropologia inglesas”. (GEBARA, 2010, p. 121) Burton era membro da Royal Geogrephical Society de Londres a qual financiava parte de suas expedições. GEBARA comenta a importância de Burton para a referida instituição inglesa, enfatizando que

ele contribuiu com artigos nas publicações da sociedade desde 1854, quando publicou um texto sobre sua viagem à Meca. O auto recebeu uma medalha de ouro em 1859 por sua exploração da África Oriental e pela “descoberta” do lago Tanganica durante a expedição, iniciada três anos antes, em companhia de John Hanning Speke, e esteve bastante envolvidos nos acalorados debates sobre as origens do Nilo, que dominavam boa parte dos interesses da [Royal Geogrephical Society] RGS para com a África naquele momento. (GEBARA, 2010, p.121)

A particularidade na apreensão dos textos, seja de Burton ou de qualquer “homem de ciência” caracteriza-se como uma apropriação ímpar, é chamada por Chartier de “invenção criadora no processo de recepção”, noção que valoriza o leitor enquanto sujeito ativo no processo de interiorização de textos.  (CHARTIER, 1988, p. 131) O historiador Roger Chartier, apoiado nas ideias de Michel de Certeau, menciona que a prática historiográfica é produtora de conhecimentos por apresentar um caráter científico “mas uma prática cujas mentalidades dependem das variações de seus procedimentos técnicos, dos constrangimentos que lhe impõe o lugar social e a instituição de saber onde ela é exercida, ou ainda das regras que necessariamente comandam sua escrita”. (CHARTIER, 1994, p. 112)
De acordo com Gizele Zanotto (2008) os estudos de Chartier são referência para a análise da história da leitura e das formas de apreensão do texto; tratam-se também de importantes ferramentas para a análise da difusão dos textos, sua apreensão e sua difusão em sociedade e, imprescindíveis para um estudo da história intelectual. Para a autora, Chartier “evidenciou, a partir do desenvolvimento proposto nos estudos de Fernando de Rojas e Pierre Bourdieu, que a apreensão de um texto não é a mesma pelos seus diferentes leitores.” (ZANOTTO,2008, p.32) A autora ainda enfatiza que,

Bourdieu, destacando a historicidade não só da escrita mas também de sua leitura, sublinhou que um livro muda pelo fato de não mudar enquanto o tempo muda, ou seja, a compreensão que a sociedade tem sobre as questões se transforma constantemente, daí a significação variar juntamente com o texto. Já Rojas, preocupado com a variação de sentidos delegada a um texto pelo seu autor e pelos diferentes leitores, considera a leitura como uma atividade produtora de sentidos singulares, não redutíveis às intenções do autor. (ZANOTTO, 2008, p. 32-33)

Ao considerarmos que o historiador tem uma particularidade, devemos pensar que, da mesma forma, o leitor faz uma leitura singular. E que, portanto pode não apreender a leitura no sentido original (autoral) do texto. Segundo Roger Chartier, como leitores, produzem sentidos singulares de suas leituras; como autores sintetizam ideias que serão lidas de formas singulares pelos seus diversos leitores, cada qual com suas preferências, anseios níveis de exigência e compreensão particulares.

Referências Bibliográficas

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__________.  Rupturas entre o presente e o passado:  Leituras sobre as concepções de tempo de Koselleck e Hannah Arendt. Revista Páginas de Filosofia, v. 2, n. 2, p. 65-88, jul/dez. 2010

BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 

BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da universidade Estadual Paulista, 1992. 

BURTON, Sir, Richard Francis. Cartas dos Campos de Batalha do Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1997. 

__________. Explorations of the Highlands of Brazil; with a full account of the gold and diamond mines; also, canoeing down 1500 miles of the great river. San Francisco, from Sabará to the sea. London, Tinsley Brothers, 1869, 2 vols. 

CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Forense Universitária, 2006. 

CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios e propostas. Estudos históricos. Rio de Janeiro: vol.7, 1994.

_______. A História Cultural entre práticas e representações. Col. Memória e sociedade. Trad. Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 13-28.

_______. O mundo como representação. In: _____. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002, p. 61-80.

GEBARA, Alexander Lemos de Almeida. A experiência do contato: As descrições populacionais de Richard Francis Burton. Tese Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História, Área de História Social.

GEBARA, Alexander Lemos de Almeida. As representações populacionais de Richard Francis Burton - Uma análise do processo de constituição do discurso sobre populações não Européias no Século XIX. Revista de História, núm. 149, dezembro, 2003, pp. 181-209, Universidade de São Paulo, Brasil. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=285022858007

JENKINS, Keith. A história repensada. São Paulo: Contexto, 2001. 

KOSELLEK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro. Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.

LOWENTHAL, David. Como conhecemos o Passado. Proj. História, São Paulo, (17), nov. 1998

MALERBA, Jurandir. A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. 

RICE, Edward. Capitão Sir Richard Francis Burton: o agente secreto que fez a peregrinação a Meca, Descobriu o Kama Sutra e trouxe as Mil e Uma Noites para o Ocidente. Charles Scribner Sons: New York 1990. 

REIS, José Carlos. Identidades do Brasil: de Varnhagem à FHC. Rio de Janeiro: FGV, 1999. 

VEYNE, Paul Marie. Como se escreve a história. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1982. 

WHITE, Hayden. Teoria literária e escrita da história. Estudos históricos. Vol. 7. Rio de Janeiro, 1991

ZANOTTO, Gizele. História dos Intelectuais e História Intelectual: Contribuições da Historiografia Francesa. Biblos, Rio Grande, 22 (1): 31-45, 2008





** Mestrando em História, Cultura e Identidades – PPGHIS - UEPG

Origens, usos e representações do Caminho do Itupava na obra de Júlio Estrela Moreira (1889-1975)

Origens, usos e representações do Caminho do Itupava na obra de Júlio Estrela Moreira (1889-1975)

Leonildo José Figueira
Mestrando - Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)
leo.hist@gmail.com


RESUMO
Por longas décadas o Caminho do Itupava representou uma importante via de acesso entre o Litoral e o Planalto e revela, na sua História, questões culturais, sociais, econômicas, políticas e até mesmo, afetivas, tal como afirma Júlio Estrela Moreira. A trilha já era utilizada por povos indígenas muito antes do contato com os europeus; e sua trajetória está carregada de significações e representações caras à História do povoamento do Paraná.

PALAVRAS-CHAVE: História do Paraná; Caminho do Itupava; História Intelectual

ABSTRACT
For many decades the Caminho do Itupava represented a major route between the coast and the Highlands and reveals in its history, cultural, social, economic, political issues and even emotional, as cited by Julio Estrela Moreira. The trail was already used by indigenous peoples long before the European contact; and its trajectory describe to the history of the peopling of Paraná.

KEYWORDS: History of Paraná; Caminho do Itupava; Intellectual History

Pelas primeiras picadas que ligavam o litoral de Paranaguá com o Planalto, subiram os preadores de índios, os faiscadores de ouro e os homens que povoaram os campos de Curitiba e os Campos Gerais. É a partir dessa afirmação de Júlio Estrela Moreira que refletimos a trajetória do caminho do Itupava bem como a sua importância como via de acesso.
Logo de início vale a pena destacar alguns fatores aos quais o povoamento de Curitiba está relacionado. Um deles era encontrar o Caminho de Peabiru para povoar e explorar o interior, fazendo da região de Curitiba uma rota ou um ponto de passagem de grupos que buscavam o Peabiru. Um outro pode estar relacionado ao crescente número de pessoas que chegaram à região atraídas pelas informações sobre a descoberta de ouro em Paranaguá. Do grande número de pessoas que chegavam ao litoral do Paraná, muitos subiam à serra do mar, formando (já no planalto) pequenas povoações, ou arraiais mineradores. Entre eles podemos destacar o Arraial Queimado, o Arraial Grande, o Arraial da Borda do Campo, entre outros.
Em meio ao cenário de povoamento do Primeiro Planalto paranaense, foi fundado em 1654 o povoado de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. Em 1693, o povoado foi elevado à categoria de vila e em 1701, passou a ser denominada Curitiba. Durante o século XIX e exploração da madeira e da erva-mate possibilita um notável crescimento, sendo elevada à categoria de cidade em 1842. Com o advento da Província do Paraná Curitiba se torna sua capital em 1854.
Junto aos importantes caminhos que ofereceram ligação ao litoral ao planalto encontra-se o Caminho do Itupava, estando diretamente ligado ao processo de formação, crescimento e consolidação da Província do Paraná. Os caminhos e trilhas fazem parte do cotidiano das pessoas desde períodos remotos da humanidade, seja para realização de atividades básicas do cotidiano como caça, coleta de alimentos, seja a migração, escoamento da produção, etc. Ao longo da História muitos caminhos se tornaram conhecidos e tiveram trechos preservados; outros sumiram em detrimento do “progresso” das sociedades, sendo apagados ou substituídos por estradas, avenidas, etc. Nesse sentido a muitos caminhos, restaram as descrições, as tradições, os relatos de viajantes, o imaginário e as representações. (BARROS. COLAVITE, 2009, p. 105)
Júlio estrela Moreira, preocupado com a importância dos caminhos para as populações, já que eles estariam ligados às relações econômicas, o contato entre povos, surgimento de povoações, publica em 1975 a obra Caminhos das Comarcas de Curitiba e Paranaguá. Nessa obra o autor descreve entre outros, o Caminho do Itupava, destacando sua importância histórica, bem como seus usos, suas transformações e suas representações para a comunidade paranaense.
Júlio Estrela Moreira nasceu em 6 de Outubro de 1899 em Curitiba, formou-se professor em 1917 na Escola Normal do Estado, hoje Instituto de Educação “Erasmo Pilotto”. Em 1921, formou-se em Odontologia pela Universidade Federal do Paraná e em 1929 em Medicina pela mesma Universidade. De acordo com informações obtidas junto à Academia Paranaense de Odontologia, Júlio Estrela Moreira foi Livre-docente da cadeira de Clínica Odontológica da Faculdade de Medicina do Paraná, prestou concurso para Catedrático em 1938 defendendo a tese “Artrite Alvéolo-Dentária-Aguda”. Em Dezembro de 1958 houve o desmembramento das Faculdades de Medicina, Farmácia e Odontologia da Universidade Federal do Paraná, neste período de desmembramento foi o seu primeiro Diretor e Organizador, mandato que exerceu até a aprovação do Regimento Interno da mesma. Durante o 50º Aniversário da Associação Brasileira de Odontologia-Seção do Paraná, recebeu dois Diplomas, um como Sócio Benemérito e Sócio Fundador e outro como Sócio Benemérito e Sócio Presidente. Após a sua aposentadoria na Universidade do Paraná, passou a escrever sobre a História de Curitiba e do Paraná; Sua dedicação à pesquisa histórica lhe permitiu descobrir boa parte das antigas trilhas por onde caminharam os primeiros colonizadores. Júlio Estrela Moreira faleceu em 24 de Julho de 1975.
Abordar a obra de Júlio Estrela Moreira e um pouco de sua trajetória é refletir a importância de um intelectual paranaense que revirou arquivos, bibliotecas, acervos em busca da valorização dos antigos caminhos, utilizados para transpor a Serra do Mar. O autor se tornou uma importante fonte para os interessados em descobrir um pouco mais sobre essas trilhas indígenas que se transformaram em atrativo turístico e patrimônio histórico do Estado do Paraná.
No que diz respeito a História Intelectual, podemos afirmar que a historiografia vem passando por grandes mudanças desde a década de 1970; nesse contexto os intelectuais passam a ganhar espaço como objeto de estudo, fugindo daquilo que Jean-François Sirinelli chamou de “ângulo morto”. A história intelectual como nova abordagem parece ser um dos resultados de mudanças que estão ocorrendo na historiografia, a partir de constantes debates que vêm ampliando gradativamente, no interior do mundo acadêmico. (ZANOTTO, 2008, p. 36)
Durante dois séculos o Itupava foi a mais importante via de acesso ligando os campos de Curitiba com o litoral, até a abertura definitiva da Estrada da Graciosa no ano de 1873. Ao longo de sua história a referida trilha recebeu diversas denominações, foi chamada de Caminho de Quereitiba, Caminho do Mar, Caminho de Paranaguá, Caminho de Cubatão, Caminho Real, Caminho Grande, Caminho de Morretes, Caminho de Coritiba, e por último o atual nome Caminho do Itupava.
Segundo Júlio E. Moreira, o topônimo Itupava pertence à língua tupi, e significa rio encachoeirado, rio de pedras, rio marulhento, corredeira revolta. O caminho foi de muita importância e significação para o desenvolvimento econômico, o surgimento de vilas e o crescimento populacional. (FAGNARI. FIORI. WAGECK. 2006. p. 8) O Caminho do Itupava merece especial atenção por ter possibilitado a chegada dos primeiros habitantes portugueses ao planalto de Curitiba, passando por Morretes, pelo atual território de Quatro Barras (Borda do Campo), seguindo para o atual Centro Histórico de Curitiba.
Os Bandeirantes (assim conhecidos pela exploração do sertão e apresamento de índios) adentraram à Serra do Mar encontrando o Caminho do Itupava o qual já havia sido construído e trilhado por povos indígenas que habitavam a região. Diz uma tradição do município de Quatro Barras-PR, que a descoberta do Caminho do Itupava se deu com alguns caçadores que perseguiam uma anta no alto da serra; seguiram o animal por uma trilha na extensão da floresta, chegando até as proximidades do rio Cubatão (Nhundiaquara) já em Morretes, onde abateram o animal. (FAGNARI. FIORI. WAGECK. 2006. p. 9)
A estrada do Itupava passava pelo Bacacheri, seguindo pelos bairros, hoje conhecidos por Bairro Alto, Atuba, indo a direção a Varginha, Borda do Campo e Campina Grande do Sul, até chegar a Serra do Mar onde o caminho se tornava perigoso. Segundo Júlio Estrela Moreira, o trajeto não era tão longo (nove ou dez léguas apenas), “começava no passo do Rio Belém em Curitiba (lugar em que atualmente fica o Largo Bittencourt, junto ao Círculo Militar). Daí rumava para leste na direção da passagem da serra”. (MOREIRA, 1975, p. 05) O autor ainda continua detalhando que o caminho “atravessava extensos campos suavemente ondulados, semeados de bosques escuros de pinheiros e de matos ralos. Varava ribeirões de pouca água pelos passos que propiciavam trânsito fácil, fora do período das chuvas” (MOREIRA, 1975, p. 05)
Visconde de Taunay deixou alguns depoimentos sobre as dificuldades em transpor o caminho:
A pior parte de todo o caminho é a do começo da descida; tem o nome de Cadeado. O declive ai e rapidíssimo; os ramos entram pelo caminho, que é cortado abaixo do nível do solo e se torna muito mais escuro, avança – se por cima de grandes pedras escorregadias e as mulas são frequentemente a se jogarem com suas cargas. (TAUNAY, 1995, p.06)

Segundo Romário Martins, o percurso do Caminho do Itupava era mais curto que o Caminho da Graciosa, porém devido ao seu mau planejamento, era um caminho mais perigoso e mais cansativo, com curvas perigosas e grandes inclinações de terreno, fornecendo, portanto, precárias condições de construir uma estrada de rodagem. Henrique de Baurepaire Rohan, militar, tenente, coronel, foi enviado aos caminhos existentes com o objetivo de detectar qual caminho oferecia melhores condições de futuros calçamentos. Em relatório apresentado em 1º de julho de 1854 ao conselheiro da Província do Paraná, Zacarias de Góes Vasconcelos, ele descreve seu estado lastimável e, como o planejamento para o Itupava fora mal feito. (MARTINS, 1958, p 106)
Precepita-se pelo costão do Cadeado e apresenta declives até de 40% e os zig-zags que nela se observam e que se multiplicam de alto a baixo são testemunhas da imperícia dos que as delinearem ou um monumento de miséria dos tempos em que se construiu esta obra admiravelmente má. Entretanto, é por ela que transita maior parte das tropas e viandantes que fazem o comercio entre a serra acima. E ao comercio uma descida em que se observa todos os preceitos da arte. (MARTINS, 1958, p 106)

O Cadeado, descrito anteriormente pelo Visconde de Taunay, apresentava-se sem condições de construir uma estrada em função de suas dificuldades. O primitivo traçado foi aberto no período entre 1649 e 1694; entre 1770 e 1772, o caminho sofreu algumas alterações para permitir a passagem de equipamento e material bélico da expedição militar incumbida de conquistar os campos de Tibagi e Guarapuava. Tais mudanças no Itupava se deram a mando de Afonso Botelho de São Paio de Souza. Ainda no ano de 1856 foram criados pequenos desvios com o objetivo de melhorar a ligação entre o litoral e o planalto.
Segundo o Jornal Dezenove de Dezembro de 9 de maio de 1885 “O inspetor da estrada do Ytupava pede autorização para praticar na serra do mesmo nome um desvio do Cadeado, que, partindo da Guaricoca, vai até ao Desconto Grande”. O mesmo jornal ainda oferece outras informações, mencionando que “o engenheiro Villauva ouvindo sobre a penetração em forma de oficio de 16 do mês, que abra, sendo a estrada concluída ligeiramente, e com a calçada ordinária, importaria em 18:500 $ 00, sem ficar, com tudo, tolerável a linha do Ytupava”.
O Jornal Dezenove de Dezembro ainda menciona as dificuldades de se fazer grandes reformas no Caminho do Itupava, e a viabilidade de se investir na Estrada da Graciosa,
Em geral, não convém fazer grandes despesas que não sejam de pura conservação nas estradas do Ytupava, uma vez que os recursos da província devem ser aproveitados os recursos na construção na Estrada da Graciosa, que se há de prestar a rodagem e produzir a maior soma possível de bens ao comercio e agricultura do país.” (DEZENOVE DE DEZEMBRO, 1885, p. 06)

É importante mencionar que ainda no ano de 1826 transitavam pelo caminho cerca de 15 mil animais carregados e, mesmo em meados do século XIX, após a inauguração da estrada carroçável da Graciosa, o caminho manteve a sua viabilidade econômica até o início da operação férrea no final deste mesmo século.
Num relatório técnico do Levantamento e Zoneamento Arqueológico do Caminho do Itupava, se lê logo na primeira página que existia certa rivalidade política e econômica entre as vilas de Paranaguá, Morretes e Antonina, que desde o século XVII motivou a disputa pela utilização dos Caminhos Itupava e Graciosa. O termino do calçamento do Caminho do Itupava aconteceu apenas em meados do século XIX. Ai então iniciava-se o desenvolvimento da economia com a construção de hospedaria, engenho e erva mate, sobretudo entre os rios São João e Taquaral.
Segundo uma das edições jornal Dezenove de Dezembro, de maio do ano 1857, “algumas recuperações foram feitas no decurso deste mesmo ano, no Caminho sob a inspeção do Tenente Coronel Manoel Gonçalves Marques, com o objetivo de melhorar a declividade na descida da serra e desviar os pontos mais difíceis e mais perigosos”. (DEZENOVE DE DEZEMBRO, 1857, p.7) Mas, segundo o mesmo jornal, as obras não puderem ter seguimento, pois acarretaria em grandes gastos, que talvez, eram pouco previstos.
O viajante Auguste de Saint Hilaire (que inclusive é citado na obra de Júlio Estrela Moreira) percorreu o sul do Brasil no lombo de burros e mulas, escrevendo, relatando o arquivando informações sobre a cultura da época, o espaço geográfico, condições de vida, etc. Ele viajou pelo Brasil entre 1816 e 1822, percorrendo várias províncias. Tais experiências resultaram num importante conjunto de obras que relatam as diferentes observações, leituras, relatos que servem hoje como importantes fontes documentais para interessados tanto em abordar o Caminho do Itupava como a própria História do Paraná. (SAINT-HILAIRE, 1995, p.13)
O viajante Saint – Hilaire passou pelos Campos Gerais, pelo planalto de Curitiba e pretendendo, em seguida, descer até o litoral paranaense. Dentre vários lugares em que se hospedou um deles, foi a Fazenda da Borda do Campo onde assistiu a fabricação do mate; depois de ter descansado de sua longa viagem e também dar descanso aos animais que o acompanhavam (burros), partiu rumo a Paranaguá pelo Caminho do Itupava no lombo do animal.
Em sua obra Caminho das Comarcas de Curitiba e Paranaguá, Saint Hilaire relata suas dificuldades ao descer a serra pelo Caminho do Itupava. Ele atravessou trechos perigosos os quais ofereciam riscos tanto para ele quanto para os animais. Por ser um caminho difícil, exigia muito esforço dos homens e dos animais. O viajante descreve o seguinte:
O primeiro trecho difícil que encontramos tem o nome de pão-de-ló. Nesse local o caminho é coberto por grandes pedras arredondadas e o seu declive é muito acentuado, de vez em quando as bestas de carga são forçadas a dar saltos assustadores para o viajante que nunca passou por essa serra. [...] perto da Boa Vista o caminho é cavado na própria montanha, numa profundidade de quatro metros, apresentando uma passagem muito estreita, pela qual os burros avançam esbarrando com suas cargas nos barrancos, à direita e à esquerda. (SAINT-HILAIRE, 1995, p.137-138)

Júlio Estrela Moreira destaca alguns aspectos do Caminho durante seu período ativo, segundo o autor
O Caminho do Itupava recebeu a instalação de pelo menos oito pousos de madeira coberta de palha construída ao longo de seu percurso para abrigar os viajantes. No ano de 1829 existiam diversos ranchos bastante conhecidos dos viajantes habituais; entre os quais eram notáveis, os morros emendando (alto da serra) do Piramirim (afluente do Ipiranga), do Guaricoca (próximo a atual estação ferroviária do Véu da Noiva) e do cume da serra (acima do Cadeado). (MORFEIRA, 1975, p. 65)

No início do século XIX, foram construídas três barreiras tributarias, que em períodos distintos funcionavam com a finalidade de cobranças de taxas sobre as mercadorias comercializadas ao longo do caminho. Havia a barreira da Campina (Borda do Campo), a barreira Itupava (próximo à margem esquerda do atual Rio São João) e a barreira do Barro Vermelho (próximo a foz do rio Ipiranga – Prainhas). (MORFEIRA, 1975, p. 56-57)
O caminho do Itupava foi de suma importância para o desenvolvimento do planalto curitibano, pois teve sua considerável participação no quadro dos caminhos que oferecem ligação com o litoral. Ao deixar de ser uma via de comunicação trafegável, com a conclusão da Estrada da Graciosa em 1873, passou a unir-se ao conjunto de atrativos turísticos e patrimônios históricos do Paraná.       

Referências Bibliográficas

BARROS. Mirian Vizintim Fernandes. COLAVITE, Ana Paula. Geoprocessamento Aplicado a Estudos do Caminho De Peabiru. Revista da ANPEGE, v. 5, p. 86 - 105, 2009

FAGNARI, José Paulo. FIORI, Júlio César. WAGECK, José C. Penna. Caminhos Coloniais da Serra do Mar. Curitiba: Natugraf, 2006.

JORNAL, Dezenove de Dezembro. Ano II, 9 de maio de 1885. p. 6

MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Farol do Saber, 1958.

MOREIRA, Júlio Estrela. Caminhos das Comarcas de Curitiba e Paranaguá. Curitiba: Imprensa Oficial, 1975.

SAINT-HILAIRE, Auguste de. (1789 – 1853). Viagem pela Comarca de Curitiba. Curitiba: Fundação Cultural, 1995.

TAUNAY. Campos e pinheirais. Curitiba: Farol do Saber, 1995.

REIS, José Carlos. Identidades do Brasil: de Varnhagem à FHC. Rio de Janeiro: FGV, 1999. 

RELATÓRIO TÉCNICO. Levantamento e Zoneamento Arqueológico do Caminho do Itupava – Serra do Mar. Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos – SEMA Programa Pró-atlântica. Curitiba; maio de 2002.

ZANOTTO, Gizele. História dos Intelectuais e História Intelectual: Contribuições da Historiografia Francesa. Biblos, Rio Grande, 22 (1): 31-45, 2008