sexta-feira, 28 de abril de 2017
A ATIVIDADE HISTORIADORA EM SEU CAMPO DISCIPLINAR: LIMITES, POSSIBILIDADES E REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG
“O campo é um jogo no qual as regras do jogo estão
elas próprias postas em jogo”
(BOURDIEU, 2003, p.29)
RESUMO:
O
presente trabalho tem por objetivo refletir o campo de conhecimento e abordagem
da História, verificando a relação com seu objeto, seus limites, suas
possibilidades, bem como a maneira como são construídos seu discurso, sua
teoria e seu método. Nesse mesmo âmbito será pertinente pensar os interditos da
História enquanto campo disciplinar, como sendo aquilo que se coloca como base
ou como proibido a seus praticantes. Não se trata de uma pretensão em responder
todas as questões caras à esta temática, mas sim contribuir para uma importante
discussão em torno da disciplina e do ofício do historiador.
PALAVRAS
CHAVE: Teoria da História; Historiografia; Campo
disciplinar
ABSTRACT: The present work aims to reflect the field of knowledge and history approach, verifying the relationship with its object, its
limits, its possibilities and
how they are constructed his speech, his theory and
his method. In this same context will be relevant
interdicts think of
history as a disciplinary field,
as that which arises
as a base or as the
forbidden its practitioners. This is not a claim to
answer all the questions guys this theme, but
contribute to an important discussion about the discipline and profession of historian.
KEYWORDS: Theory of History; historiography; disciplinary field
A partir do fato histórico, são produzidos e elaborados diferentes discursos,
diversas concepções, que resultam em obras caracterizadas como “texto
histórico”; o qual está sujeito a reflexões, críticas que surgem, vindo de
outras vertentes de pensamento. Nesse contexto concordamos com Haydem White ao
afirmar que a realidade passada é o objeto de estudo da história ao passo que a
historiografia é o discurso produzido pelo historiador. (WHITE,
1991, p. 21) O historiador busca
compreender as ações práticas dos homens, os móveis que os animam, os fins que
os norteiam, o seu universo simbólico e suas significações que para esses
homens tinham seus comportamentos e ações.
De maneira prática a
história se volta aos eventos humanos no tempo e só se torna visível e
compreensível com a sucessão temporal, que por sua vez faz ser necessário à
reescrita contínua da história. (REIS, 1999. p. 08) O tempo é um fator
fundamental para a historiografia, pois com a sucessão do mesmo, novas questões
são propostas e o historiador, como responsável pela produção do conhecimento
histórico, tem uma vasta e mais profunda percepção do passado.
A história fomenta
questões, que são resultantes de um tempo vivido, um presente que é particular
a cada historiador, uma vez que toda a produção historiográfica está enraizada
em uma particularidade, um lugar social. A história se torna, então, uma
reconstrução narrativa, documental e conceitual do passado, porém construída em
um presente. (CERTEAU, 2006, p. 72)
Não há um passado fixo
a ser esgotado pela história uma vez que não existe verdade absoluta. A
história é constantemente escrita e reescrita tornando-se assim resultado de
inúmeras posições do presente, e a interpretação histórica vai depender de quem
a formulou, em outras palavras, vai se ter uma visão diferente ao analisar o
mesmo assunto escrito por “um nativo ou um estrangeiro, um amigo ou inimigo, um
erudito ou um cortesão, um burguês ou um camponês, um rebelde ou um súdito
dócil”. (MALERBA, 2006 p. 14)
O historiador Roger
Chartier usa das palavras de Michel de Certeau para falar a respeito da prática
historiográfica, enfatizando que:
ela [a História] é uma prática
científica, produtora de conhecimentos, mas uma prática cujas mentalidades
dependem das variações de seus procedimentos técnicos, dos constrangimentos que
lhe impõe o lugar social e a instituição de saber onde ela é exercida, ou ainda
das regras que necessariamente comandam sua escrita. (CHARTIER 1994. p. 112.)
A história enquanto
conhecimento, é constituída por uma série de discursos à respeito o mundo, se
apropriando do mesmo e atribuindo-lhe significados. (WHITE, 1999, p. 14) A
história é, porém, diferente de passado, existem livres um do outro embora
sejam aliados. (JENKINS,
Keith. p. 24) Podemos dizer que o
passado e a história estão distantes um do outro no tempo e no espaço, e essa
argumentação se dá pelo fato de um mesmo objeto de investigação ser visto e
interpretado por práticas discursivas diferentes, ao passo que cada uma dessas
práticas possui uma linguagem diferente e valores totalmente diferentes.
Ao observarmos um
quadro de uma determinada época, ou até mesmo uma paisagem atual, ambos serão
observadas e lidas de maneira diferente por geólogos, historiadores, artistas,
economistas, etc. Assim percebe-se que a história, embora seja um discurso
sobre o passado, está numa categoria diferente dele. (JENKINS, Keith. p. 25)
O
termo “passado”, deve ser usado para se referir à tudo o que passou em todos os
lugares; a história trabalha com fragmentos do passado, apenas com os fatos
importantes que não merecem cair no esquecimento.
Deste modo podemos
conceber que a historiografia é o mais completo testemunho que podemos ter
sobre diversas culturas que foram desaparecendo ao longo do tempo. O
conhecimento científico obtido pela pesquisa exprime-se na historiografia, para
a qual as formas de interpretação desempenham um papel tão relevante quanto o
dos métodos da pesquisa. A história se apropria de um discurso científico para
tratar do seu objeto, porém não possui um método distinto de pesquisa, segundo Hayden White (1999).
O conhecimento
histórico é produzido por um grupo de profissionais, chamados historiadores,
estes quando iniciam seu trabalho carregam certas coisas identificáveis e que
lhes são particulares. Levam a si mesmos, seus valores, suas posições, suas
perspectivas ideológicas, seus pressupostos epistemológicos, entre outros
fatores os quais os quais acompanham-no durante toda a pesquisa. O historiador
pode estar inserido em diversas categorias, como econômicas, sociais, políticas,
culturais, ideológicas, etc.
Não existem métodos
definitivos nem teorias definitivas que apresentem a verdade absoluta da
história, uma vez que o presente enquanto ponto de observação ou investigação
do passado, muda com a sucessão do tempo. Assim, o que se tem são apenas visões
parciais do passado, pensamentos que estão assentados sobre um ponto de vista
que é particular. Segundo Michel de Certeau, todo o historiador é marcado por
um lugar social, onde sua filiação teórica, filosófica e metodológica é que vai
estabelecer as questões a serem postas. (REIS, 1999, p.10) “A verdade histórica
talvez possa ser comparada a um caleidoscópio: os historiadores diversos e
sucessivos escolhem e sintetizam, serve–se de metáforas, formulam perguntas
especificas servem-se de fontes e técnicas diferentes”. (REIS, 1999, p.11)
Sendo uma narrativa de
acontecimentos, a História apresenta diversas variações em seus relatos;
(VEYNE, 1982, p. 20) podemos ter um mesmo evento, por exemplo, visto por vários
ângulos e analisada por diferentes métodos. O historiador não descreve
exaustivamente uma civilização ou um determinado período, ele não trata de
todos os fatos de maneira minuciosa de modo a realizar um inventário completo;
ele apresentará somente o que é necessário para se conhecer a determinada
civilização, escrevendo assim somente os fatos que marcaram seja a civilização
ou o período.
Todo o historiador
pretende oferecer um ponto de vista novo e mais abrangente ao escrever a
história. Muitas escolas históricas carregam consigo a ideia de que seu ponto
de vista é único, definitivo, construídas em bases objetivas e científicas,
desvalorizando assim as interpretações feitas anteriormente, e consequentemente
designando-as como equivocadas ultrapassadas ideológicas e etc., ignorando a
condição temporal em que se deu a elaboração da História. (REIS, 2001, p.11)
Ao colocar a pesquisa
por escrito entram em cena os fatores epistemológicos, metodológicos e ideológicos,
inter-relacionando-se com as práticas cotidianas, tal qual aconteceu durante
todas as fases da pesquisa. É preciso considerar que o historiador possui uma
vida familiar, ele está sujeito às pressões do local de trabalho, no qual se
fazem sentir influências de diversas pessoas; existem também as pressões das
editoras sobre diversos fatores como, por exemplo: a extensão o formato, o
mercado os prazos, o estilo literário (polêmico, discursivo, exuberante, etc.),
leituras críticas, a reescrita, entre outras. Porem ao produzir um conhecimento
histórico partindo da pesquisa seguindo da escrita até chegar à biblioteca, o
historiador passou por diversas pressões, sendo sujeito a diversas influencias,
o que com certeza entra em choque com o produto do seu trabalho. (JEINKIS, 2001 p. 18-19)
Mais que um exercício
intelectual, a história é uma operação, que produz e trabalha com a
historicidade. A construção de um conhecimento histórico exige o entendimento e
o domínio de procedimentos técnicos, exige um olhar sensível conceitualmente,
teoricamente formado e metodologicamente preparado. (CERTEAU, 2006, p. 72)
Quando nos referimos à
relação entre as três instâncias de temporalidade, “Passado”, “Presente” e
“Futuro”, nos referimos a um vasto objeto que instiga e provoca a constante
reflexão tanto de historiadores como outros intelectuais interessados. Desde a
antiguidade, pensadores como “Santo Agostinho e Aristóteles já dedicavam ao
“tempo” reflexões importantes que até os anos mais recentes têm servido como
patamares de diálogos para filósofos contemporâneos como Heidegger (1927) e
Paul Ricoeur (1983-85)”. (BARROS, 2010, p. 66) O tempo é fundamental para o
estudo da História, pois é a partir dele que as sociedades humanas são
analisadas, comparadas e transformadas em objeto. Segundo José D’Assunção
Barros, Reinhart Koselleck (1923-2006) é um dos poucos autores que forneceram
um “instrumental teórico mais apropriado para compreender esta questão na
Historiografia”. Koselleck desenvolveu a perspectiva de que cada presente não
apenas reconstrói o passado a partir de problematizações, mas que o presente
este resinifica tanto o passado como o futuro. Koselleck se refere ao passado
como sendo o “campo de experiências” e, ao futuro como sendo “horizonte de
expectativas” Mais ainda, para Koselleck,
cada presente concebe também de
uma nova maneira a relação entre futuro e passado, ou seja, a assimetria entre
estas duas instâncias da temporalidade. E não é por acaso que o título de sua
mais conhecida coletânea de ensaios é Futuro passado – contribuição à semântica
dos tempos históricos (Koselleck 1979). (BARROS, 2010, p. 66)
Segundo Koselleck,
entre o “espaço de experiência” e o “horizonte de expectativas” é sempre
estabelecida uma tensão, que é própria da elaboração do conhecimento histórico
e mesmo das diversas leituras sobre o fenômeno da temporalidade que vão
surgindo em cada época, as quais lhes são oferecidos no momento atualmente vivenciado.
Tanto a experiência como a expectativa são apresentadas por Koselleck como duas
categorias para uso da Teoria da História, que entrelaçam passado e futuro
(KOSELLECK, 2006, p. 308). Dessa maneira o passado, o presente e o futuro podem
se alterarem, contraírem ou se expandirem conforme cada época ou sociedade,
podendo modificar ou resinificar a maneira como são sentidas e pensadas.
Segundo David Lowenthal
(1998) nós conhecemos o passado porque ele nos cerca, ou seja, lembramo-nos das
coisas, lemos e ouvimos histórias e crônicas e vivemos entre relíquias de
épocas anteriores. Toda consciência atual se funda em atitudes e percepções do
passado, pois reconhecemos uma pessoa, uma árvore, uma tarefa, etc., porque já
vimos ou já experimentamos. (LOWENTHAL, 1998, p. 64). Para o autor, “somos a
qualquer momento a soma de todos os nossos momentos” (LOWENTHAL, 1998, p.64), afirma,
ainda, que o passado nunca está morto uma vez que ele existe ininterruptamente
na memória de pensadores e de homens imaginativos.
De fato ele [o passado] existe na
memória de todos nós. Consequentemente tomamos conhecimento não somente de
nossas ações e pensamentos anteriores, como também daqueles de outrem, seja por
testemunho direto ou de terceiros. Até sinais de experiência excessivamente
remota podem se tornar conscientes. (LOWENTHAL, 1998, p. 65)
Para Kosellek (2006) o
tempo não é algo natural e evidente, mas sim uma construção cultural que “em
cada época, determina um modo específico de relacionamento entre o já conhecido
e experimentado como passado e as possibilidades que se lançam ao futuro como
horizonte de expectativa”. (KOSELLEK, 2006, p. 09) O autor nos deixa claro que
a experiência pertence ao passado o qual se materializa ou se concretiza no
presente, de diversas maneiras, seja pela memória, pelos vestígios, pelas fontes
históricas ou até mesmo pelas permanências sentidas e percebidas no seio da
vida cotidiana. Segundo esse autor
A experiência é o passado atual,
aquele no qual acontecimentos foram ‘incorporados e podem ser lembrados. Na
experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas
inconscientes de comportamento, que não estão mais, que não precisam estar mais
presentes no conhecimento. Além disso, na experiência de cada um, transmitida
por gerações e instituições, sempre está contida e é preservada uma experiência
alheia. Neste sentido, também a história é desde sempre concebida como
conhecimento de experiências alheias” (KOSELLECK, 2006, p. 309-310).
As expectativas
correspondem a todo um universo de sensações e antecipações que se referem,
mais precisamente ao devir. Tudo o que se refere ao futuro, aqui é pensado,
seja relacionado aos nossos medos, nossas esperanças, nossos desejos, nossas
inquietações, etc. ao horizonte de expectativas. A experiência se realiza no
presente, que por sua vez é uma herança do passado, mas que produz inúmeras
sensações sobre o futuro, sendo uma expectativa que se realiza hoje. (BARROS, 2010, p. 68)
Podemos afirmar que a historiografia vem passando por grandes mudanças
desde a década de 1970; nesse contexto os intelectuais passam a ganhar espaço
como objeto de estudo, fugindo daquilo que Jean-François Sirinelli chamou de
“ângulo morto”. A história intelectual como nova abordagem parece ser um dos
resultados de mudanças que estão ocorrendo na historiografia, a partir de
constantes debates que vêm ampliando gradativamente, no interior do mundo
acadêmico. (ZANOTTO, 2008, p. 36)
De maneira prática, para além dos pressupostos teóricos, abordamos o
viajante inglês Richard Francis Burton entre 1863 e 1865, período em que
permaneceu como cônsul em Santos. Considerado
um dos mais marcantes intelectuais do seu tempo, nasceu em 1821 em
Hertfordshire e morreu em 1890 em Trieste; curiosamente viveu numa época de
grande importância política para seu país, período de reinado da Rainha
Vitória. Ele foi militar, diplomata, cientista, naturalista e autor de mais de
30 obras, entre relatos etnológicos e traduções; um explorador de vida
movimentada e romanesca que empreendeu ousadas expedições no continente africano
ao lado de John Hanning Speke. (RICE, 1991, p.19)
Como
cônsul inglês em Santos, Burton permaneceu entre 1865 e 1869, deixando
importantes narrativas sobre os lugares por onde passou. Relatos, estes, que
vão além da observação pitoresca e, nos servem de fonte histórica a
antropológica. Trata-se de um homem de ciência do século XIX e, para estuda-lo
nos apropriaremos das discussões pertinentes dentro do campo da História, mais
precisamente da História Intelectual.
Justificando
a afirmativa de que Burton foi uma das personalidades mais marcantes do século
XIX, ele falava 29 idiomas e vários dialetos,
disfarçava-se com muita facilidade, o que lhe possibilitou viver entre os povos do Oriente
e da África. Estudou sobre a cultura de povos asiáticos e africanos, fato que
permite verificar um pioneirismo em relação a Antropologia e os estudos etnológicos,
especialmente dado a suas produções e expedições ligadas à Royal Geographical Society e Antrhopological
Society of London, por volta da década de 1860.
Burton peregrinou à cidade de Meca em 1853, (sagrada e proibida aos não muçulmanos)
disfarçado de afegão; também foi à Harar, capital da Somália,
de onde nenhum outro homem branco havia saído com vida. (RICE, 1991, p. 231)
Juntamente com John Hanning Speke, como já mencionamos, explorou a região dos
Grandes Lagos africanos, promoveu a busca pela nascente do Rio Nilo, descobriu
o lago Tanganica Antes da posição consular em Santos, em 1861 foi nomeado
cônsul em Fernando Pó
(atual Bioko),
no mesmo ano em que casou-se com Isabel, numa cerimônia católica.
No
Brasil, Burton percorreu, Rio das Velhas, o Rio São Francisco, esteve em Minas
Gerais, na Bahia,
no Rio de Janeiro, em São Paulo, produzindo importantes relatos sobre a terra,
a gente, a geografia, etc. Tais relatos sobre o Brasil foram publicados em
Londres, no ano de 1969 na obra titulada Explorations of
the Highlands of Brazil;
uma ano depois seria publicada Letter from the battlefield of Paraguay, também em Londres.
Em
Londres, Burton teve Karl Marx como colega de pesquisa em algumas salas de
leituras nas grandes instituições de Londres (RICE, 1991, P. 19) o Historiador
Eward Rice, na tentativa de traçar um breve panorama do contexto histórico na
época de Burton, ressalta que
A
Revolução Industrial estava em pleno florescimento, transformando o verdejante
campo dos poetas ingleses em montes de miseráveis escórias humanas; as
potências europeias tinha recortado o mundo em colônias, protetorados e esferas
de influência; as invenções que diariamente modificavam o perfil do cotidiano
surgiam em avalanche e, à medida que aumentava a alfabetização, ideias de toda
espécie – revolucionárias, intelectuais, científicas e políticas – se
alastravam por todo o mundo com a força de uma epidemia. (RICE, 1991, p. 19)
Segundo Alexander Gebara “durante as décadas de 1850 e 1860 o nome de
Burton esteve associado as viagens de exploração e, principalmente, a geografia
e a antropologia inglesas”. (GEBARA, 2010, p. 121) Burton era membro da Royal Geogrephical Society de Londres a
qual financiava parte de suas expedições. GEBARA comenta a importância de
Burton para a referida instituição inglesa, enfatizando que
ele
contribuiu com artigos nas publicações da sociedade desde 1854, quando publicou
um texto sobre sua viagem à Meca. O auto recebeu uma medalha de ouro em 1859
por sua exploração da África Oriental e pela “descoberta” do lago Tanganica
durante a expedição, iniciada três anos antes, em companhia de John Hanning
Speke, e esteve bastante envolvidos nos acalorados debates sobre as origens do
Nilo, que dominavam boa parte dos interesses da [Royal Geogrephical Society] RGS para com a África naquele momento.
(GEBARA, 2010, p.121)
A particularidade na
apreensão dos textos, seja de Burton ou de qualquer “homem de ciência”
caracteriza-se como uma apropriação ímpar, é chamada por Chartier de “invenção
criadora no processo de recepção”, noção que valoriza o leitor enquanto sujeito
ativo no processo de interiorização de textos.
(CHARTIER, 1988, p. 131) O historiador Roger Chartier, apoiado nas
ideias de Michel de Certeau, menciona que a prática historiográfica é produtora
de conhecimentos por apresentar um caráter científico “mas uma prática cujas
mentalidades dependem das variações de seus procedimentos técnicos, dos
constrangimentos que lhe impõe o lugar social e a instituição de saber onde ela
é exercida, ou ainda das regras que necessariamente comandam sua escrita”. (CHARTIER,
1994, p. 112)
De acordo com Gizele
Zanotto (2008) os estudos de Chartier são referência para a análise da história
da leitura e das formas de apreensão do texto; tratam-se também de importantes
ferramentas para a análise da difusão dos textos, sua apreensão e sua difusão
em sociedade e, imprescindíveis para um estudo da história intelectual. Para a
autora, Chartier “evidenciou, a partir do desenvolvimento proposto nos estudos
de Fernando de Rojas e Pierre Bourdieu, que a apreensão de um texto não é a
mesma pelos seus diferentes leitores.” (ZANOTTO,2008, p.32) A autora ainda
enfatiza que,
Bourdieu, destacando a
historicidade não só da escrita mas também de sua leitura, sublinhou que um
livro muda pelo fato de não mudar enquanto o tempo muda, ou seja, a compreensão
que a sociedade tem sobre as questões se transforma constantemente, daí a
significação variar juntamente com o texto. Já Rojas, preocupado com a variação
de sentidos delegada a um texto pelo seu autor e pelos diferentes leitores,
considera a leitura como uma atividade produtora de sentidos singulares, não
redutíveis às intenções do autor. (ZANOTTO, 2008, p. 32-33)
Ao considerarmos que o
historiador tem uma particularidade, devemos pensar que, da mesma forma, o
leitor faz uma leitura singular. E que, portanto pode não apreender a leitura
no sentido original (autoral) do texto. Segundo Roger Chartier, como leitores,
produzem sentidos singulares de suas leituras; como autores sintetizam ideias
que serão lidas de formas singulares pelos seus diversos leitores, cada qual
com suas preferências, anseios níveis de exigência e compreensão particulares.
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Origens, usos e representações do Caminho do Itupava na obra de Júlio Estrela Moreira (1889-1975)
Origens, usos e
representações do Caminho do Itupava na obra de Júlio Estrela Moreira
(1889-1975)
Leonildo José Figueira
Mestrando - Universidade Estadual de Ponta Grossa
(UEPG)
leo.hist@gmail.com
RESUMO
Por
longas décadas o Caminho do Itupava representou uma importante via de acesso
entre o Litoral e o Planalto e revela, na sua História, questões culturais,
sociais, econômicas, políticas e até mesmo, afetivas, tal como afirma Júlio
Estrela Moreira. A trilha já era utilizada por povos indígenas muito antes do
contato com os europeus; e sua trajetória está carregada de significações e
representações caras à História do povoamento do Paraná.
PALAVRAS-CHAVE: História do
Paraná; Caminho do Itupava; História Intelectual
ABSTRACT
For many decades
the Caminho do Itupava represented a major route between the coast and the
Highlands and reveals in its history, cultural, social, economic, political
issues and even emotional, as cited by Julio Estrela Moreira. The trail was
already used by indigenous peoples long before the European contact; and its
trajectory describe to the history of the peopling of Paraná.
KEYWORDS: History of Paraná; Caminho
do Itupava; Intellectual History
Pelas primeiras picadas que ligavam o
litoral de Paranaguá com o Planalto, subiram os preadores de índios, os
faiscadores de ouro e os homens que povoaram os campos de Curitiba e os Campos
Gerais. É a partir dessa afirmação de Júlio Estrela Moreira que refletimos a
trajetória do caminho do Itupava bem como a sua importância como via de acesso.
Logo de início vale a pena destacar
alguns fatores aos quais o povoamento de Curitiba está relacionado. Um deles
era encontrar o Caminho de Peabiru para povoar e explorar o interior, fazendo
da região de Curitiba uma rota ou um ponto de passagem de grupos que buscavam o
Peabiru. Um outro pode estar relacionado ao crescente número de pessoas que
chegaram à região atraídas pelas informações sobre a descoberta de ouro em
Paranaguá. Do grande número de pessoas que chegavam ao litoral do Paraná,
muitos subiam à serra do mar, formando (já no planalto) pequenas povoações, ou
arraiais mineradores. Entre eles podemos destacar o Arraial Queimado, o Arraial
Grande, o Arraial da Borda do Campo, entre outros.
Em meio ao cenário de povoamento do Primeiro
Planalto paranaense, foi fundado em 1654 o povoado de Nossa Senhora da Luz
dos Pinhais de Curitiba. Em 1693, o povoado foi elevado à categoria
de vila e em 1701, passou a ser denominada Curitiba.
Durante o século XIX e exploração da madeira e da erva-mate possibilita um
notável crescimento, sendo elevada à categoria de cidade em 1842. Com o advento
da Província do Paraná Curitiba se torna sua capital em 1854.
Junto aos importantes caminhos que
ofereceram ligação ao litoral ao planalto encontra-se o Caminho do Itupava,
estando diretamente ligado ao processo de formação, crescimento e consolidação
da Província do Paraná. Os caminhos e trilhas fazem parte do cotidiano das
pessoas desde períodos remotos da humanidade, seja para realização de atividades
básicas do cotidiano como caça, coleta de alimentos, seja a migração,
escoamento da produção, etc. Ao longo da História muitos caminhos se tornaram
conhecidos e tiveram trechos preservados; outros sumiram em detrimento do
“progresso” das sociedades, sendo apagados ou substituídos por estradas,
avenidas, etc. Nesse sentido a muitos caminhos, restaram as descrições, as
tradições, os relatos de viajantes, o imaginário e as representações. (BARROS.
COLAVITE, 2009, p. 105)
Júlio estrela Moreira, preocupado com a
importância dos caminhos para as populações, já que eles estariam ligados às
relações econômicas, o contato entre povos, surgimento de povoações, publica em
1975 a obra Caminhos das Comarcas de
Curitiba e Paranaguá. Nessa obra o autor descreve entre outros, o Caminho
do Itupava, destacando sua importância histórica, bem como seus usos, suas
transformações e suas representações para a comunidade paranaense.
Júlio Estrela Moreira nasceu em 6 de
Outubro de 1899 em Curitiba, formou-se professor em 1917 na Escola Normal do
Estado, hoje Instituto de Educação “Erasmo Pilotto”. Em 1921, formou-se em
Odontologia pela Universidade Federal do Paraná e em 1929 em Medicina pela
mesma Universidade. De acordo com informações obtidas junto à Academia
Paranaense de Odontologia, Júlio Estrela Moreira foi Livre-docente da cadeira
de Clínica Odontológica da Faculdade de Medicina do Paraná, prestou concurso
para Catedrático em 1938 defendendo a tese “Artrite Alvéolo-Dentária-Aguda”. Em
Dezembro de 1958 houve o desmembramento das Faculdades de Medicina, Farmácia e
Odontologia da Universidade Federal do Paraná, neste período de desmembramento
foi o seu primeiro Diretor e Organizador, mandato que exerceu até a aprovação
do Regimento Interno da mesma. Durante o 50º Aniversário da Associação
Brasileira de Odontologia-Seção do Paraná, recebeu dois Diplomas, um como Sócio
Benemérito e Sócio Fundador e outro como Sócio Benemérito e Sócio Presidente.
Após a sua aposentadoria na Universidade do Paraná, passou a escrever sobre a
História de Curitiba e do Paraná; Sua dedicação à pesquisa histórica lhe
permitiu descobrir boa parte das antigas trilhas por onde caminharam os
primeiros colonizadores. Júlio Estrela Moreira faleceu em 24 de Julho de 1975.
Abordar a obra de Júlio
Estrela Moreira e um pouco de sua trajetória é refletir a importância de um
intelectual paranaense que revirou arquivos, bibliotecas, acervos em busca da
valorização dos antigos caminhos, utilizados para transpor a Serra do Mar. O
autor se tornou uma importante fonte para os interessados em descobrir um pouco
mais sobre essas trilhas indígenas que se transformaram em atrativo turístico e
patrimônio histórico do Estado do Paraná.
No que diz respeito a História
Intelectual, podemos afirmar que a
historiografia vem passando por grandes mudanças desde a década de 1970; nesse
contexto os intelectuais passam a ganhar espaço como objeto de estudo, fugindo
daquilo que Jean-François Sirinelli chamou de “ângulo morto”. A história
intelectual como nova abordagem parece ser um dos resultados de mudanças que
estão ocorrendo na historiografia, a partir de constantes debates que vêm
ampliando gradativamente, no interior do mundo acadêmico. (ZANOTTO, 2008, p. 36)
Durante dois séculos o Itupava foi a
mais importante via de acesso ligando os campos de Curitiba com o litoral, até
a abertura definitiva da Estrada da Graciosa no ano de 1873. Ao longo de sua
história a referida trilha recebeu diversas denominações, foi chamada de
Caminho de Quereitiba, Caminho do Mar, Caminho de Paranaguá, Caminho de
Cubatão, Caminho Real, Caminho Grande, Caminho de Morretes, Caminho de
Coritiba, e por último o atual nome Caminho do Itupava.
Segundo Júlio E. Moreira, o topônimo
Itupava pertence à língua tupi, e significa rio encachoeirado, rio de pedras,
rio marulhento, corredeira revolta. O caminho foi de muita importância e
significação para o desenvolvimento econômico, o surgimento de vilas e o
crescimento populacional. (FAGNARI. FIORI. WAGECK. 2006. p. 8) O Caminho do Itupava merece especial
atenção por ter possibilitado a chegada dos primeiros habitantes portugueses ao
planalto de Curitiba, passando por Morretes, pelo atual território de Quatro
Barras (Borda do Campo), seguindo para o atual Centro Histórico de Curitiba.
Os Bandeirantes (assim conhecidos pela
exploração do sertão e apresamento de índios) adentraram à Serra do Mar
encontrando o Caminho do Itupava o qual já havia sido construído e trilhado por
povos indígenas que habitavam a região. Diz uma tradição do município de Quatro
Barras-PR, que a descoberta do Caminho do Itupava se deu com alguns caçadores
que perseguiam uma anta no alto da serra; seguiram o animal por uma trilha na
extensão da floresta, chegando até as proximidades do rio Cubatão
(Nhundiaquara) já em Morretes, onde abateram o animal. (FAGNARI. FIORI. WAGECK.
2006. p. 9)
A estrada do Itupava passava pelo
Bacacheri, seguindo pelos bairros, hoje conhecidos por Bairro Alto, Atuba, indo
a direção a Varginha, Borda do Campo e Campina Grande do Sul, até chegar a
Serra do Mar onde o caminho se tornava perigoso. Segundo Júlio Estrela Moreira,
o trajeto não era tão longo (nove ou dez léguas apenas), “começava no passo do
Rio Belém em Curitiba (lugar em que atualmente fica o Largo Bittencourt, junto
ao Círculo Militar). Daí rumava para leste na direção da passagem da serra”. (MOREIRA,
1975, p. 05) O autor ainda continua detalhando que o caminho “atravessava
extensos campos suavemente ondulados, semeados de bosques escuros de pinheiros
e de matos ralos. Varava ribeirões de pouca água pelos passos que propiciavam
trânsito fácil, fora do período das chuvas” (MOREIRA, 1975, p. 05)
Visconde de Taunay deixou alguns
depoimentos sobre as dificuldades em transpor o caminho:
A pior parte de todo o caminho é
a do começo da descida; tem o nome de Cadeado. O declive ai e rapidíssimo; os
ramos entram pelo caminho, que é cortado abaixo do nível do solo e se torna
muito mais escuro, avança – se por cima de grandes pedras escorregadias e as
mulas são frequentemente a se jogarem com suas cargas. (TAUNAY, 1995, p.06)
Segundo Romário Martins, o percurso do Caminho
do Itupava era mais curto que o Caminho da Graciosa, porém devido ao seu mau
planejamento, era um caminho mais perigoso e mais cansativo, com curvas
perigosas e grandes inclinações de terreno, fornecendo, portanto, precárias
condições de construir uma estrada de rodagem. Henrique de Baurepaire Rohan,
militar, tenente, coronel, foi enviado aos caminhos existentes com o objetivo
de detectar qual caminho oferecia melhores condições de futuros calçamentos. Em
relatório apresentado em 1º de julho de 1854 ao conselheiro da Província do
Paraná, Zacarias de Góes Vasconcelos, ele descreve seu estado lastimável e,
como o planejamento para o Itupava fora mal feito. (MARTINS, 1958, p 106)
Precepita-se pelo costão do
Cadeado e apresenta declives até de 40% e os zig-zags que nela se observam e
que se multiplicam de alto a baixo são testemunhas da imperícia dos que as
delinearem ou um monumento de miséria dos tempos em que se construiu esta obra
admiravelmente má. Entretanto, é por ela que transita maior parte das tropas e
viandantes que fazem o comercio entre a serra acima. E ao comercio uma descida
em que se observa todos os preceitos da arte. (MARTINS, 1958, p 106)
O Cadeado, descrito anteriormente pelo
Visconde de Taunay, apresentava-se sem condições de construir uma estrada em
função de suas dificuldades. O primitivo traçado foi aberto no período entre
1649 e 1694; entre 1770 e 1772, o caminho sofreu algumas alterações para
permitir a passagem de equipamento e material bélico da expedição militar
incumbida de conquistar os campos de Tibagi e Guarapuava. Tais mudanças no
Itupava se deram a mando de Afonso Botelho de São Paio de Souza. Ainda no ano
de 1856 foram criados pequenos desvios com o objetivo de melhorar a ligação
entre o litoral e o planalto.
Segundo o Jornal Dezenove de Dezembro de
9 de maio de 1885 “O inspetor da estrada do Ytupava pede autorização para
praticar na serra do mesmo nome um desvio do Cadeado, que, partindo da
Guaricoca, vai até ao Desconto Grande”. O mesmo jornal ainda oferece outras
informações, mencionando que “o engenheiro Villauva ouvindo sobre a penetração
em forma de oficio de 16 do mês, que abra, sendo a estrada concluída ligeiramente,
e com a calçada ordinária, importaria em 18:500 $ 00, sem ficar, com tudo,
tolerável a linha do Ytupava”.
O Jornal Dezenove de Dezembro ainda
menciona as dificuldades de se fazer grandes reformas no Caminho do Itupava, e
a viabilidade de se investir na Estrada da Graciosa,
Em geral, não convém fazer
grandes despesas que não sejam de pura conservação nas estradas do Ytupava, uma
vez que os recursos da província devem ser aproveitados os recursos na
construção na Estrada da Graciosa, que se há de prestar a rodagem e produzir a
maior soma possível de bens ao comercio e agricultura do país.” (DEZENOVE DE
DEZEMBRO, 1885, p. 06)
É importante mencionar que ainda no ano
de 1826 transitavam pelo caminho cerca de 15 mil animais carregados e, mesmo em
meados do século XIX, após a inauguração da estrada carroçável da Graciosa, o
caminho manteve a sua viabilidade econômica até o início da operação férrea no
final deste mesmo século.
Num relatório técnico do Levantamento e
Zoneamento Arqueológico do Caminho do Itupava, se lê logo na primeira página
que existia certa rivalidade política e econômica entre as vilas de Paranaguá, Morretes e Antonina, que desde o
século XVII motivou a disputa pela utilização dos Caminhos Itupava e Graciosa.
O termino do calçamento do Caminho do Itupava aconteceu apenas em meados do
século XIX. Ai então iniciava-se o desenvolvimento da economia com a construção
de hospedaria, engenho e erva mate, sobretudo entre os rios São João e
Taquaral.
Segundo uma das edições jornal Dezenove de Dezembro, de maio do ano
1857, “algumas recuperações foram feitas no decurso deste mesmo ano, no Caminho
sob a inspeção do Tenente Coronel Manoel Gonçalves Marques, com o objetivo de
melhorar a declividade na descida da serra e desviar os pontos mais difíceis e
mais perigosos”. (DEZENOVE DE DEZEMBRO, 1857, p.7) Mas, segundo o mesmo jornal,
as obras não puderem ter seguimento, pois acarretaria em grandes gastos, que
talvez, eram pouco previstos.
O viajante Auguste de Saint Hilaire (que
inclusive é citado na obra de Júlio Estrela Moreira) percorreu o sul do Brasil
no lombo de burros e mulas, escrevendo, relatando o arquivando informações
sobre a cultura da época, o espaço geográfico, condições de vida, etc. Ele
viajou pelo Brasil entre 1816 e 1822, percorrendo várias províncias. Tais
experiências resultaram num importante conjunto de obras que relatam as
diferentes observações, leituras, relatos que servem hoje como importantes
fontes documentais para interessados tanto em abordar o Caminho do Itupava como
a própria História do Paraná. (SAINT-HILAIRE, 1995, p.13)
O viajante Saint – Hilaire passou pelos
Campos Gerais, pelo planalto de Curitiba e pretendendo, em seguida, descer até
o litoral paranaense. Dentre vários lugares em que se hospedou um deles, foi a
Fazenda da Borda do Campo onde assistiu a fabricação do mate; depois de ter
descansado de sua longa viagem e também dar descanso aos animais que o
acompanhavam (burros), partiu rumo a Paranaguá pelo Caminho do Itupava no lombo
do animal.
Em sua obra Caminho das Comarcas de Curitiba e Paranaguá, Saint Hilaire relata
suas dificuldades ao descer a serra pelo Caminho do Itupava. Ele atravessou
trechos perigosos os quais ofereciam riscos tanto para ele quanto para os
animais. Por ser um caminho difícil, exigia muito esforço dos homens e dos
animais. O viajante descreve o seguinte:
O primeiro trecho difícil que
encontramos tem o nome de pão-de-ló. Nesse local o caminho é coberto por grandes
pedras arredondadas e o seu declive é muito acentuado, de vez em quando as
bestas de carga são forçadas a dar saltos assustadores para o viajante que
nunca passou por essa serra. [...] perto da Boa Vista o caminho é cavado na
própria montanha, numa profundidade de quatro metros, apresentando uma passagem
muito estreita, pela qual os burros avançam esbarrando com suas cargas nos
barrancos, à direita e à esquerda. (SAINT-HILAIRE, 1995, p.137-138)
Júlio Estrela Moreira destaca alguns
aspectos do Caminho durante seu período ativo, segundo o autor
O Caminho do Itupava recebeu a
instalação de pelo menos oito pousos de madeira coberta de palha construída ao
longo de seu percurso para abrigar os viajantes. No ano de 1829 existiam
diversos ranchos bastante conhecidos dos viajantes habituais; entre os quais
eram notáveis, os morros emendando (alto da serra) do Piramirim (afluente do
Ipiranga), do Guaricoca (próximo a atual estação ferroviária do Véu da Noiva) e
do cume da serra (acima do Cadeado). (MORFEIRA, 1975, p. 65)
No início do século XIX, foram
construídas três barreiras tributarias, que em períodos distintos funcionavam
com a finalidade de cobranças de taxas sobre as mercadorias comercializadas ao
longo do caminho. Havia a barreira da Campina (Borda do Campo), a barreira
Itupava (próximo à margem esquerda do atual Rio São João) e a barreira do Barro
Vermelho (próximo a foz do rio Ipiranga – Prainhas). (MORFEIRA, 1975, p. 56-57)
O caminho do Itupava foi de suma
importância para o desenvolvimento do planalto curitibano, pois teve sua
considerável participação no quadro dos caminhos que oferecem ligação com o
litoral. Ao deixar de ser uma via de comunicação trafegável, com a conclusão da
Estrada da Graciosa em 1873, passou a unir-se ao conjunto de atrativos
turísticos e patrimônios históricos do Paraná.
Referências
Bibliográficas
BARROS.
Mirian Vizintim Fernandes. COLAVITE, Ana Paula. Geoprocessamento Aplicado a Estudos do Caminho De Peabiru. Revista
da ANPEGE, v. 5, p. 86 - 105, 2009
FAGNARI, José Paulo. FIORI, Júlio César. WAGECK, José C. Penna. Caminhos Coloniais da Serra do Mar.
Curitiba: Natugraf, 2006.
JORNAL, Dezenove de Dezembro. Ano
II, 9 de maio de 1885. p. 6
MARTINS, Romário. História do
Paraná. Curitiba: Farol do Saber, 1958.
MOREIRA, Júlio Estrela. Caminhos
das Comarcas de Curitiba e Paranaguá. Curitiba: Imprensa Oficial, 1975.
SAINT-HILAIRE,
Auguste de. (1789 – 1853). Viagem pela
Comarca de Curitiba. Curitiba: Fundação Cultural, 1995.
TAUNAY. Campos e pinheirais.
Curitiba: Farol do Saber, 1995.
REIS,
José Carlos. Identidades do Brasil: de
Varnhagem à FHC. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
RELATÓRIO
TÉCNICO. Levantamento e Zoneamento
Arqueológico do Caminho do Itupava – Serra do Mar. Secretaria de Estado do
Meio Ambiente e Recursos Hídricos – SEMA Programa Pró-atlântica. Curitiba; maio
de 2002.
ZANOTTO,
Gizele. História dos Intelectuais e
História Intelectual: Contribuições da Historiografia Francesa. Biblos, Rio
Grande, 22 (1): 31-45, 2008
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